Área é a maior fonte de água da capital São Luís e um grande abrigo de espécies ameaçadas, como o gato-do-mato-pequeno.
Um projeto de lei tramita desde julho para legalizar grandes fazendas numa unidade de conservação estadual, no sudeste do Maranhão. A área mantém valiosas fontes de água, cenários turísticos, vegetação e animais raros ou ameaçados de extinção.
Decretado em junho de 1980, o Parque do Mirador é a maior reserva de proteção integral daquele estado nordestino. Sua conservação evita que rios como Itapecuru e Alpercatas se tornem intermitentes. Eles são a maior fonte de água de um milhão de pessoas, na capital São Luís, além de outros municípios, terras indígenas, indústria e agropecuária.
“O parque foi criado justamente para proteger essas nascentes”, lembra Roberta de Figueiredo Lima, do Núcleo de Estudos e Pesquisas em Questões Agrárias (Nera) da Universidade Federal do Maranhão (UFMA) e doutora em Geografia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
A reserva é igualmente um manancial de vida selvagem. Campos, matas, veredas e buritizais pontuam o Cerrado preservado. Apenas 8,6% do bioma estão em unidades de conservação. Já uma nota da Secretaria do Meio Ambiente e Recursos Naturais do Maranhão (Sema/MA), de setembro, afirma que ela é crucial para o gato-do-mato-pintadinho (Leopardus tigrinus).
“A espécie está na lista brasileira de espécies ameaçadas de extinção. O Parque Estadual de Mirador é a unidade de conservação mais importante do mundo para essa espécie, pois é a única área capaz de sustentar, por si só, populações ecologicamente viáveis a longo prazo”, diz o documento.
Ocupação especulativa
Apesar do indiscutível valor socioambiental, análises do Nera/UFMA sobre dados do Sistema de Gestão Fundiária do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) revelam que, há quatro anos, o parque já tinha 61 imóveis registrados em seus limites.
Os lotes de 1.000 ha a 43 mil ha estão cadastrados para agropecuaristas, empresas de gerenciamento de capital e investimentos, bem como empresários paranaenses e catarinenses da soja e cana-de-açúcar, mostra o levantamento, publicado pela Comissão Pastoral da Terra (CPT).
“O parque foi criado sobre terras devolutas estaduais, cujas destinações prioritárias são reforma agrária e conservação, como pede a Constituição Federal”, lembra o advogado Vitor Hugo Moraes, Assessor de Políticas Públicas do Instituto Sociedade, População e Natureza (ISPN).
Uma ação discriminatória do Tribunal de Justiça do Maranhão, de junho, aponta que deveriam ser “canceladas as matrículas de imóveis que estejam encravadas dentro da referida área [do Parque do Mirador]”. Tais ações separam áreas públicas de privadas.
Contudo, as terras têm servido para compensar as Reservas Legais, algo permitido na legislação florestal de 2012. Mantendo essas áreas, o empresariado faria um balanço com o desmatado em outras regiões. Além disso, o parque também é alvo de especulação.
Em páginas de imobiliárias e Redes Sociais no Brasil todo há anúncios de compra e venda de terras dentro da unidade de conservação. Os valores podem passar dos R$ 3 milhões. Nos últimos dias, ((o)eco flagrou um lote de 1.742 ha à venda no local, por cerca de R$ 700 mil.
O comércio de terras dentro e no entorno da área protegida foi aquecido pelo asfaltamento da MA-372, rodovia entre Mirador e São Domingos do Azeitão. Ela facilitará o transporte de grãos e minérios até o Porto do Itaqui, em São Luís (MA), um dos terminais exportadores do Arco Norte.
Além de grandes imóveis, há mais de duzentas famílias vivendo de agricultura, extrativismo, artesanato, criação de aves, porcos e bois na reserva. A grande maioria está no sul da área protegida. Elas habitariam a região desde 1890, antes da criação do parque.
“São importantes agentes para a governança do território, contribuindo com a proteção da área”, pondera a Sema/MA.
Dobradinha legislativa
O tamanho e as atividades registradas para o agronegócio dentro do Parque do Mirador levantam dúvidas sobre sua legalidade, ressalta Patrícia Silva, secretária-executiva do Observatório dos Conflitos Socioambientais do Matopiba. “Não podem ser regularizadas em terras públicas, têm que ter o registro suspenso”, reforça.
Todavia, a política busca meios para legalizá-las. Um projeto de lei do deputado estadual Eric Costa (PSD) muda o desenho da unidade de conservação para manter fazendas lá dentro, inclusive na chapada rica em nascentes dos rios Itapecuru e Alpercatas.
Se passar na Assembleia Legislativa, o proposto encontrará uma lei estadual modificada ano passado que permite regularizar até 2,5 mil ha para quem comprovar “a morada permanente e cultura efetiva, pelo prazo de 5 anos”. Acima desse tamanho, só com autorização da Assembleia.
“Há um risco grande e concreto de que o Parque perca uma parcela muito importante de seu território”, avisa a advogada Patrícia Silva, mestre em Meio Ambiente e Desenvolvimento Rural pela Universidade de Brasília (UnB).
Em seu projeto, de número 280/2024, Eric Costa alega querer corrigir divergências entre o que seriam as “medidas reais” da unidade de conservação estadual e o estipulado desde o decreto que a criou nos anos 1980. A questão não é simples.
Dança dos limites
O Parque do Mirador foi decretado com 700 mil ha, similares a ⅓ da área de Sergipe. Em 1989, foi ampliado para 766,8 mil ha. A Sema/MA reconhece 500,8 mil ha “para fins de gestão”. O plano de manejo do parque está em aprovação. Agora, Eric Costa quer “ampliar” a área para 502 mil ha.
“Essa extensão não apenas soluciona a disparidade entre os textos legais, mas também fortalece as ações de preservação ambiental, garantindo a proteção de áreas vitais para a biodiversidade regional”, disse o deputado em notícia da Assembleia Legislativa do Maranhão.
Ele não atendeu nossos pedidos de entrevista até o fechamento da reportagem, pois, conforme seus assessores de gabinete, esteve com compromissos excessivos ligados às eleições municipais. Costa foi prefeito de Barra do Corda (MA), de 2013 a 2020.
Enquanto isso, Roberta Lima, do Núcleo de Estudos e Pesquisas em Questões Agrárias da Universidade Federal do Maranhão (UFMA), lembra que a região do parque é pressionada pela agropecuária desde os anos 1970. À época, uma sentença já tinha comprovado que as terras eram públicas.
“O estado deveria ter reconhecido e demarcado as posses legítimas, mas não não cumpriu a sentença e, em 1980, criou o Parque do Mirador”, explica a doutora em Geografia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
De lá para cá, o governo estadual ainda não demarcou a unidade de conservação e o judiciário maranhense enfileira pedidos para registros de terras em seus limites.
“Isso tudo só favorece a grilagem de terras no Parque Estadual do Mirador”, destaca Vitor Hugo Moraes, Assessor de Políticas Públicas do Instituto Sociedade, População e Natureza (ISPN).
Já a análise da Sema/MA lista que falta uma justificativa técnico-científica para mudar o traçado do parque, que isso complicará sua regularização fundiária, estimulará mais conflitos e que áreas importantes para a conservação serão desprotegidas.
“A Superintendência de Biodiversidade e Áreas Protegidas (SBAP) manifesta-se de forma desfavorável ao PL nº 280/2024, sugerindo-se a não aprovação da proposta pela Assembleia Legislativa do Maranhão”, ressalta o órgão ambiental estadual.
Pressões múltiplas
Considerado um “um marco na conservação ambiental no Maranhão” pela Sema/MA, o Parque do Mirador também é vítima da falta de fiscalização e de ilegalidades como desmate, queimadas e incêndios e caça de animais silvestres., mostrou ((o))eco.
O cenário não é diferente do enfrentado por outras áreas preservadas no Matopiba, região entre os estados do Maranhão, Tocantins, Piaui e Bahia sob forte expansão da agropecuária industrializada.
“No Matopiba ocorreu 47% de todo o desmatamento do país em 2023 e 74% do desmatamento do Cerrado no mesmo período”, detalha uma nota técnica da Associação Brasileira dos Membros do Ministério Público de Meio Ambiente (Abrampa), de junho.
Tamanha pressão acelerou inclusive a certificação de imóveis privados em áreas indígenas no Maranhão, no governo Jair Bolsonaro. A Terra Indígena Porquinhos teve 35 registros, mostra um balanço do Conselho Indigenista Missionário.
No território, cerca de mil pessoas da etnia Canela Apanyekrá dependem do Cerrado preservado e de águas que fluem igualmente do Parque do Mirador. A possível tomada da unidade de conservação pelo agro ameaça o futuro dessas pessoas.
“Crianças, adultos e idosos bebem e tomam banho nas águas dos rios. Ficamos preocupados que, quando chover, todos os venenos da soja e do eucalipto irão para a terra indígena”, reclama Paulo Thugran, liderança na Terra Indígena Porquinhos.
Segundo ele, a validação de fazendas onde hoje é o Parque Mirador será fonte de mais desmatamento, queimadas, poluição e doenças. “Deveríamos estar cuidando de nossas matas e rios, de tudo que a gente mais precisa para viver”, destaca Thugran.
Procurada pela reportagem, a Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) não se pronunciou sobre a situação da Terra Indígena porquinhos.
Aldem Bourscheit
Jornalista brasilo-luxemburguês cobrindo há mais de duas décadas temas como Conservação da Natureza, Crimes contra a Vida Sel... →
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