- * rreses estropiadas que já iam arrastando os pés, os cascos. Parte delas escapava, outra parte, não. Mesmo assim resolvia o problema tanto de quem comprava como de quem vendia, pois se
elas continuassem no meio do gado, logo arriavam e urubu comia.
Seu João Paulo as vezes gastava mês, 2 meses ou até mais numa viagem tangendo boiada. Ele sabia tão bem contar aqueles cousos pitorescos de mei-de-camim, dos pernoites, das travessias de rio grande, boiada batendo o peito n'água, emoção danada naquele momento, ele jogando dentro d'água tudo que ele possuia. É que a prática adquirida através dos anos nos dá uma certa garantia do que se está fazendo. Seu João Paulo citava nome de vários rios grandes e muito longe: Rio Manso, Rio Manuel Alves, era o Manelave Grande e o Manelave Pequeno. Era assim que ele falava. Acho que ele atravessou até o Tocantins tocando boiada. Disso porém não tenho certeza. Na travessia do Tocantins naquele tempo era preciso usar o “boi de piranha”. Enquanto as piranhas se entretiam mais pra baixo comendo um boiéco bichado qualquer, o grosso da boiada atravessava mais por riba, a salvo delas.
Certa vez meu pai comprou um bezerrão esquisito, da cara sirigada, esbranquiçada, como coisa que salpicaram talco na cara dele. Era Gir, a gente não sabia, sabia apenas que era zebu. Meu pai deu a ele o nome de “Empoado" justamente por conta de sua cara salpicada de pô. 0 "empoado” cresceu dum tanto, virou um mundo veio de garrote. De tão grande que ele era não deixou crias, pelo menos nâo me lembro de nenhuma, é que nossas vaquinhas eram minúsculas, não podiam com ele.
Enquanto o seu João Paulo andava pelas distâncias, dona Humbilina aguentava o batente durante os meses de ausência do marido. Dinheiro pouco, famião grande para atender de um tudo. Eta dona Humbelina, mulher que nao bambeava. Nem bambeava, nem perdia sua energia. Ela era boa, sim, cumprideira de suas obrigações, mas tinha mão de ferro, mesmo era preciso, pra não perder a rédea na frente duma família daquele tamanho era preciso pulso. Isso ela tinha.
Gentilzim. Pouco me lembro do Gentilzinho, só me lembro que ele era pequenico, uma bostica de gente, igualzim ao compadre Luiz do Zé Uruçu, aquelas carinhas de bicho do mato, mas eram duas grandes almas. 0 Amadeu adorava a ambos. 0 Gentilzinho era metido a dentista, já o compadre Luizim, no fim, foi ser vendedor de passagem do õnibus que fazia aquela linha, ele, compadre Luiz ainda apareceu lá pela Ingarana uma vez ou duas, pra ver o Amadeu.
Seu Zé Uruçu tinha filho pra danar, metade macho, metade mulher. Seu Zé no começo foi tropeiro, depois variou. Os filhos mais velhos já criados, que nem o Gerardo Uruçu, homem esperto, logo se arrumou na vida, tinha o seu negocio até bem forte, aí ele fez uma casa enorme, muitos cômodos. Gerardo gostava dum gole, e de tanto gostar de cachaça, dizendo o povo, que ele suspendeu uma dorna lá por riba da casa e de lá encanou pinga para alguns cômodos. Então, se chegava um companheiro ou um freguês que também gosta, conforme o cômodo que eles estivessem, era so abrir a torneirinha e encher o copo. Disso não tenho certeza.
Não vi. Mas se o povo fala?
O Anfiloquio era outro filho do seu Zé 0ruçu. Era também esperto igual ao Gerardo, logo logo também fez seu pé-de-meia. Anfiloquio também era doido por cachaça. Que desgraça! Pessoas tão bacanas que nem eles. Pois não é que a infeliz da bebida deu conta de consumir os dois? Coitada de dona Belinha. 0 Gerardo, esse eu apenas conhecia, mas o Anfiloquio, esse não, esse era meu amigo do peito.
A casa de seu Zé Uruçu esteve sempre de portas abertas para todos nós, filhos do Xito Ribeiro. Dona Belinha era boazinha demais, recebia a gente sem cisma, acomodava a gente, agradava. Ah como que aquela dona Belinha adorava seu marido, era um caqueado, aquele falar carinhoso e submisso. Era bonito aquilo. Seu Zé era homem de pouca cultura, mas era jeitoso pras coisas e possuia grande sabedoria de vida. Esses atributos somados à sua honestidade fizeram dele um dos primeiros prefeitos, quando Tuntum virou cidade. Ele bem merecia, era homem direito.
Tinha o Chico Uruçu, tinha o Osmar, tinha o Luizim, e filha mulher também tinham muitas: a Creuza era esperta que nem os outros, se casou primeiro com um tal que eu não me lembro o nome se era Aprígio? Com ele teve um filho, o Airton, também esperto, é que filho de cearense é que nem filho de nambu, já nasce correndo. Airton pererecou por Tuntum durante um tempo caçando jeito de empinar sua curica, não deu conta. Nesse entremeio fez foi se envolver num acidente de carro, com vítimas fatais, andaram querendo pôr culpa nele, ele contrariou com aquilo, foi-se embora pro Pará. Por lá ele conseguiu o que queria, fez seu prato. Hoje é bem estabelecido numa cidade do outro lado do Tocantins, a 100 quilômetros da Imperatriz.
As meninas de seu Zé Uruçu eram tantas, além da Creuza tinha também a Nitinha, a Gracinha, a Hiolanda, essa se casou com um filho do Faustino Amancio. Esse rapaz, pelo que eu ouvi dizer, certa ocasião ele foi fazer uma aventura pras bandas do Rio de Janeiro. Parece que por lá ele foi preso, e que o negócio envolvia uns escondidos que ninguém sabia direito o que era.
Ê assim mesmo, a gente cai, depois se levanta de novo. No tropeção a gente costuma aprender uma liçãozinha qualquer, que é pra não cair travez.
Meu Tuntum. Ah meu Tuntum dos favores, da generosidade, da fraternidade humana, que nem as atitudes de minha mãe e de dona Rita. Sou feito daquela massa, daquela matéria: da abóbora, da banana, do milho verde, do arroz com feijão, enfim, foi com essa gororoba que eu ganhei sustância para sair pro mundo, que nem fazem todos os nordestinos. Sai, mas o Tuntum mora dentro de mim. Só que o Tuntum que mora dentro de mim é aquele Tuntum antigo, de 1.95O, cuja cultura dali era a amizade em primeiro lugar, não querer mal a ninguém, e socorrer a quem precisa, se for possivel.
Tinha do outro lado, no Tuntum de Cima um homem muito importante, era o seu Ariston Leda. Seu Ariston era honrado, competente pra tratar com todos, sabia sobre coisas da cidade grande, sabia falar com cada um e sabia ouvir. Ele, seu Zé Uruçu e o Isaque Martins foram os três primeiros prefeitos dali, quando Tuntum virou cidade. Bem merecido, pois se o suor deles estava misturado no meio de tudo ali.
Seu Ariston tinha umas filhas que eram as coisas mais lindas, parece que uma delas virou "Miss Estado do Maranhao". Todos admiraram quando eu falei certa vez:-essa menina ainda vai ser misse, ela era ainda adolescente quando falei isso, pois não é que aconteceu? Tinha também a Graça que era a irmã mais velha, igualmente bela, só que sua vozinha tinha urna ressonância assim, assim…
Lá no Tuntum de Cima tinha um fazedor de cela, de arreio e de cangalha. Meu pai cançou de emcomendar artefatos de couro a ela. Desse não me lembro mais nem do nome nem de suas feições.Tinha o Adi, que era irmão de seu Ariston, o Adi na verdade se chamava Adilon, ele morava mais era lá pra fazenda dele. Esse tinha tambem filhas lindas. Tinha
a Rosa Amelia, estudamos juntos no Colegio de dona Virgínia Leda, em Dom Pedro, a Rosa Amelia era bonita, sim, mas que bonita mesmo era a outra, cujo nome terminava com Amelia também, essa de se ver era ainda mais bela mesmo que as filhas do seu Ariston, mal comparando, e que essa uma derradeira mais se parecia era com uma santa, até diziam mesmo que ela se parecia era com Santa Terezinha. Era dizer do povo de lá.
Aconteceu que essa menina, ainda criança de tudo se enamorou do Joaci de dona Rita. Joaci era seu primo e também um belo jovem e estava se preparando para ser médico, - e logo virou médico. Se formou.
Em férias do Joaci, o que se via era os dois agarradinhos, sempre e sempre juntos, pois se eles até se pareciam um com o outro, e tinham o mesmo sangue. Na verdade a cidade de Tuntum nunca tinha visto um chamego igual entre dois jovens dali. Então, porque Joaci ia se formar doutor, a cidade se preparava para dois grandes acontecidos naquela hora: um era a formatura em si. Ele seria o primeiro doutor médico, não somente do Tuntum, como também de Presidente Dutra, cidade vizinha. 0 outro acontecimento seria o casamento do seu filho ilustre com seu anjinho lindo. A cidade sonhava, naquela esperança de ter o seu doutor, aquele que conhecia nós todos de um por um, ele era simplesmente um de nós. Não aconteceu. Não houve casamento, o anjo lindo do Joaci debandou pra outro lado, se encantou por outro. Que pena! Que tamanha desilusão! Joaci não aguentou ficar no Tuntum, era preparado, ganhou mundo, foi parar no Rio de Janeiro, mas sua cabeça só Deus sabe por onde andava, de formas que pra lá demorou pouco para que chegasse a notícia; - Joaci morreu. Foi um acidente de automóvel. Nao se sabe como, pois se ele não bebia, nao tinha vícios, porque será que aconteceu então? Foi triste, muito triste essa notícia para a cidade. Dona Rita, coitada, ficou traspassada. Não é assim a vida?
0 Joaci era gêmeo com o Juarez. 0 Juarez também foi-se embora de Tuntum, não sei se para Minas ou se para o Rio de Janeiro, sei apenas que por lá ele virou sargento do Exército, ou será que ele virou foi tenente? Pois como sempre acontece com o destino de gêmeos, aconteceu também com o Joaci e o Juarez. Logo chegou a notícia que ele morreu. Morreu de doença de Chagas, mal esse adquirido lá por Minas, onde tem o tal de "barbeiro", essa praga.
A vida da gente tem hora que é ilusão, tem hora que ela é desengano. 0 Comandante é só quem sabe o que merecemos.
Dona Rita! Dona Rita! Quanta dor!? Minha santa, que destino? Quanto sofrimento naquela sua alma tão bondosa.
Perdeu seus dois gêmeos, os mais belos dali, e perdeu mais o Zeca. 0 Zeca que era outro ente maravilhoso do Tuntum. Nao me lembro direito se ele foi prefeito, ou se preparava para isso. 0 Zeca era muito especial, era mais moreno que os gêmeos, porém tão belo de feições quanto eles, é que a beleza do Zeca não era só aquela que se via na face, a beleza dele era maior, era a beleza do ser, da bondade herdada de dona Rita, da prestatividade, do chega-pra-cá. Meus irmãos o adoravam, a Raimundinha e o Deusdethque tanto conviveram juntos em São Luís. A morte do Zeca foi outro buraco profundo no emocional da vida do Tuntum. Ele tinha aquela consideração com o Amadeu, e com todos nós enfim, pois se minha mãe sempre dizia que éramos parentes, minha mãe e a Raimundinha assinam de sobrenome Coelho. E mesmo que não fosse, a vida nos juntou, nos uniu e pronto.
A morte do Zeca foi estúpida, foi assassinato. Foi um vento torto que deu na vida daquele povo, um destocer de destino, desastre de sorte, um atrás do outro, só coisa terrível.
Como se não bastasse, naquela mesma época dona Rita perdeu mais dois filhos num acidente de carro: o Justo e o Coelho Neto.
Dona Rita! Dona Rita! Que destino?
Aí, uns anos depois eu passando por Tuntum, seu Alípio, que quase nunca tinha tempo pra nós, dessa vez ele nao me largava, só ficava o tempo todo era comigo. Ele tinha se aposentado, comprado uma camioneta nova e nela era só me levando num lugar e noutro, recuperando o tempo perdido de nossa amizade. Certa hora, quando a casa deles que era sempre cheia, esvasiou, dona Rita me pegou pelo braço e me levou lá pra sala, pra diante da fileira de retratos dos seus anjos. Ali, diante das fotos, nós ficamos parados, de braços dados. Ela olhava cada uma das fotos, apontava com o dedo. Sua voz nao saía..., o que saiam eram suas lágrimas, essas desciam dos seus olhos e dos meus. Quem vai entender?
0 Tuntum so perdia a cada um deles que se ia. 0 Joaci, médico. Quanta utilidade teria ali? O Zeca, um lider que mal começava sua obra em benefício da cidade e do munici pio.
Ai a gente fica cismando, cismando, querendo saber o que que a vida significa. Só o Comandante sabe. Só Ele tem competência de saber. A gente apenas fica se interrogando: - tinha que ser assim mesmo?
A vida eu não vou entender é nunca. A Dona Rita, tão santa, era mesmo esse o prêmio a merecer por tanto bem
que praticou. Quem sou eu para contestar?
E o meu Tuntum? 0 meu Tuntun tá lá, no mesmo canto, ficou uma cidade até bonitinha, graças a essa nova geração de autoridades. Quem diria ela embelezar tanto, um lugar tão fora de esquadro. Fizeram uma maquilagem, ela ficou engraçadinha.
Essa história é do tipo da historinha que só tem serventia para nosso consumo, ela é particular, da nossa intimidade, nós do Tuntum.
Tinha o seu Manuel Borges, a casa dele era do lado de riba da Baixa-da-Égua, trabalhador ele era demais, e adquiriu muita coisa a custa do seu suor. Por fim ele fez um predião enorme do outro lado da grota da Baixa-da-Égua, esse prédio era para abrigar uma usina também muito grande, a ma-quinaria estava encomendada, enquanto eles corriam trabalhando dia e noite, arrumando piso, suporte de máquinas e tanta coisa, o galope tava arrochado. Antes do almoço os caminhões chegaram com a maquinaria. Um dos motoristas veio de lá e perguntou o que ele já sabia: - é aqui que vai ser instalada a usina de seu Manuel Borges? Manuel Borges exausto como es¬tava, estafado, enxada na mão, todo sujo, todo lascado, respondeu pro motorista dando ordem:
- Vocês manobrem os caminhões, entrem de marcha a ré até lá no fundo. Nós vamos almoçar e na volta e gente começa a descarregar. Falou Manuel Borges.
Os motoristas nem se aluiram do lugar perante o que acabaram de ouvir, continuaram ali quietinhos, até que um outro motorista voltou a se manifiestar: - nós queria falar era com seu Manuel Borges mesmo, pra saber como fazer. Foi aí que um dos seus filhos explicou aos motoristas que o Ma¬nuel Borges, apesar de não parecer, era aquele senhor que lhes deu a ordem. Mas, também pudera, naquele estado de conservação quem acreditaria que aquele traste era um empresário?Seria preciso muito tempo pra eu poder falar de tantas pessoas, todas elas de especial valor no meio daquela Comunidade que eles iam transformando em cidade, pessoas que nem o Dodô, o ChiCO TOTÔ, O Antonio, o Paulo, o Alexandre, todos Andrades, o Julião, o Fernando Caroço, o Alípio Mulher e tantas senhoras da maior importância em minha vida.
Texto de Américo Ribeiro
Colaboração Maria Salete Carvalho Coêlho